quinta-feira, 24 de abril de 2014

Carta à Matriarca by the {Un}told

Já faz tempo meu amor …
Questiono-me se sentes a minha falta, a falta das minhas palavras, do meu sabor amargo, do meu corpo resguardado, tímido e inibido, perante o teu esplendor, o teu corpo alado.
Como ao meu lado te costumavas deitar, como os meus lábios costumavas beijar naquele rude despertar. Um traço de sangue transformava-se num tracejado que percorrias, ferozmente me agarravas, o meu corpo tomavas e me olhavas, e cedente estremecias, cedente sorrias.
 As tuas mãos frias no meu peito, quando sobre mim éramos um. Sucessões de movimentos, desenvergonhados em sangue e em lágrimas ficávamos banhados.
Marcas deixavas, como migalhas para aquele espaço que era só nosso, para que nunca me perdesse, para que nunca esquecesse as palavras que me ensinaste e o sentimento que me mostraste. Não me esqueci, como podia …

“Uma tela pintada, um desenho se apresenta,
contornos carregados por lápis afiados,
vermelho é a cor que se evidencia,
medo, medo é o sentimento, a dádiva oferecida.
Como que num espelho, reflectido
Interpretado por um tumulto, encapuçado
Me vejo inerte, um sem expressão erguido
Atrás de mim, na altura, um vulto mascarado
Hoje, um sorriso, não confuso, decidido

Um sem expressão de nome sombra,
outrora era o que via,
nos degraus frios encolhido tremia,
enquanto que o chão estremecia,
cada vez mais, confuso me perdia.

À Janela via o tempo passar,
sem nada fazer, me deixava levar …
Meu maior erro, o medo e a dor culpar
em vez de estes de braços abertos abraçar.”


“Quem não sucumbe às mágoas da vida fica para sempre com esta em divida” palavras que proferias, como que uma profecia, não eram mais que verdades reflectidas na cortina esbatida, lembras-te?
“A maior falácia é julgar poder viver sem sofrer, dar sem receber.
Como podemos se não desejar …
Como podemos se não respeitar …
Como podemos se não admirar …

… aquele que força o sangue a jorrar,
que aperta no peito toda a dor e sofrimento,
em que se banha e encontra, todo o contentamento.

… a clareza que ofusca, a clareza que se procura
está  na alma, deslumbrante e inerte, vestida de vermelho.
De saltos, austera e bela, pelas pernas, cetim até ao joelho,
é a minha amada e não só, é a inveja de qualquer espelho.

Pintam-te de vermelho como me pintam de branco,
a recusa e a repulsa não me é indiferente,
Espelho estilhaçado, parecer quebrado
pego no pincel que partilho, este não tem odor, desprovido de gatilho
num gesto só, sucinto e decidido, rasgo o tecido
o branco não é transparente, como que uma nascente
deste  jaz uma nova corrente.

Imperativo é deixar fluir, correr e nascer. Dar ao mundo a beber, dar ao mundo a aprender, uma oportunidade de cair, sofrer e morrer, para que possamos um dia sim dizer que sabemos o que é viver.”

Bem sabes como gosto de pregar, às paredes que me ouvem. Na retina ver esbatida, tudo o que tenho para dar seja mágoa, dor ou pesar.

Gosto de pensar que estás orgulhosa de mim …
Gosto de pensar que as minhas palavras são lidas e as minhas intenções percebidas …
Gosto de pensar que na tua ausência não estou sozinho, que na tua ausência encontrei o meu caminho …


Hoje não sou uma criança, hoje crescido, das profundezas erguido, deparo-me à tua procura, mais uma vez, para te dizer que encontrei esperança, para te dizer que a tempestade passou e a bonança voltou.
Lembras-te destas palavras? Naquele espaço só nosso, ao som da melodia predilecta? Como as paredes pintaste e ao meu coração berraste, só para no papel poder esboçar um bocado de mim, o caminho ao destino que ele percorre, o sangue que nas nossas veias escorre…
Como tudo era tão mais fácil nessa altura …

“Fazeis de mim o que puderes,
de joelhos me entrego, de joelhos me confesso,
que a razão porque nasci é a razão porque me perdi,
para todos os receios, abrigo procuro naqueles que são os seus seios,
de lágrimas nos olhos, um alguém a quem em encostar, um alguém com quem partilhar,
alguém a quem a mão dar e pelas linhas passear, no fim de contas, alguém a quem amar.”

Hoje caminho em cetim de pregos, calejado e firme aprecio a paisagem, não é para o destino que olho mas sim para a viagem. Assim me despeço assim me entrego, até à próxima jornada, até à próxima caminhada, meu amor.


Do teu insólito pecador.